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Hospital de Bonecas

Tentando atravessar a cidade, enquanto lidava com os problemas cotidianos que todos temos que dar conta, meu táxi fura o pneu e me deixa na Rua Augusta próximo ao meu destino, o ateliê do artista Caio Borges. Chegando à pé ao edifício procurei desligar meu celular para poder me concentrar, me desconectar do mundo virtual e estar presente. Cheguei ao apartamento do Caio e, para minha surpresa, todos os cômodos estavam imersos em cores vibrantes de pinturas. O apartamento acumulava em seus cômodos telas e mais telas enfileiradas. Até mesmo o banheiro, um lugar que geralmente evoca uma estética mais funcional e despretensiosa, continha pinturas em suas paredes.

Uma série de pinturas trazia retratos do rosto de bonecas. Os rostos como que agigantados em um close-up de cinema revelavam traços de bonecas do passado. Sobre as pinturas, se equilibrando na beirada dos chassis, numerosos olhos de bonecas nos fitam agora separados de suas cabeças. Quando perguntei de onde viera aquela coleção de olhos, Caio me respondeu que ele tinha ganhado após uma visita a um hospital de bonecas, uma loja que conserta e restaura brinquedos antigos e estimados por seus donos.

Enquanto explorávamos seu lar transformado em ateliê, observando algumas de suas séries de trabalhos, mergulhamos em conversas profundas sobre as violências que enfrentamos desde a infância por sermos queer. É talvez impossível chegar à idade adulta sem ser gravemente ferido pelo menos uma vez, ainda que em dimensões simbólicas. Rememoramos alguns momentos em que fomos machucados por palavras e ações cruéis. 

Certamente, somos marcados pelas cicatrizes invisíveis dessas experiências traumáticas. 
Por vezes, sentimos como se fôssemos tratados como "bens danificados", damaged goods. Mas não queremos ser mercadorias observadas por um controle de qualidade numa planta de fábrica. As estruturas de poder tendem a marginalizar aqueles que apontam para as hipocrisias e injustiças, especialmente quando se trata de pessoas LGBTQIA+ que são frequentemente desacreditadas, suas vozes diminuídas e suas histórias silenciadas.

É também tarefa árdua lidar com nossa própria homofobia internalizada. Reconhecer os momentos em que internalizamos as normas sociais opressivas e as usamos contra nós mesmos, é um processo desafiador. Precisamos confrontar constantemente os estereótipos negativos que nos foram impostos, desconstruir preconceitos arraigados e nos libertar mais uma vez.

Nesse caminho de autorreflexão e cura, encontramos na arte um instrumento poderoso para processar essas feridas profundas. Através da expressão artística, podemos dar voz às nossas experiências, compartilhar nossas dores e inventar mundos alternativos, onde a aceitação e o amor prevalecem.

Caio lembrou das obras cinematográficas de Pedro Almodóvar, que inventam uma Espanha colorida e livre, ainda que nascidas em uma Espanha fascista, cinza e opressiva. Vemos em suas narrativas o poder transformador da arte, poder de inaugurar mundos e revelar as camadas mais sombrias de uma sociedade, ao mesmo tempo em que  desafia suas estruturas mais rígidas.

No contexto brasileiro, não é difícil fazer um paralelo com a realidade atual. O Brasil também enfrenta tempos conturbados, onde discursos de ódio e intolerância ganham espaço e as minorias são constantemente marginalizadas. A arte, portanto, torna-se uma ferramenta essencial para resistir e questionar as injustiças que nos permeiam. 

No entanto, é importante reconhecer que a arte não é apenas terapia, enquanto lugar de reflexão e cura. Ela vai além disso, abrindo portas para diálogos profundos e confrontos com nossa própria condição humana. Através da criação artística, podemos nos empenhar na transformação pessoal e social, buscando a construção de um mundo mais inclusivo, justo e empático. Lembrei, também, da antropóloga Françoise Héritier que dizia: “Não são somente a ação política ou a razão objetiva que farão a humanidade sair da visão hierárquica da relação entre os sexos. É a ação sobre nós mesmos” 

 

Sempre com um ponto de vista muito particular, as pinturas de Caio vasculham uma espécie de inconsciente coletivo pop, incorporando, sintetizando e agrupando através de um procedimento de colagem referências populares do cinema, publicidade, quadrinhos, artes visuais e de seu próprio ofício como ilustrador. Trata-se de uma seleção altamente específica, que reflete suas vivências pessoais e seu lugar no mundo. Percebo que há um filtro, mas ainda há algo de misterioso para mim nas imagens da cultura que ele escolhe para criar suas colagens e acumulações de personagens. Por que substituir a cabeça da atriz francesa Jeanne Moreau pela de uma cachorra poodle? Há uma sensibilidade Camp que atravessa o corpo da obra. Existe um humor e um código cifrado que se dirige exclusivamente àqueles que são queer e isso também coloca o trabalho em uma dimensão mais coletiva. Para além do humor contra a seriedade da alta cultura, o Camp pressupõe que não há uma obra de arte acabada, apenas fragmentos.


Em "Notes on Camp", Susan Sontag aponta que "o gosto Camp rejeita a noção convencional de julgamento estético baseado em bom ou mau. O Camp não inverte as coisas nem argumenta que o bom é ruim ou o ruim é bom. O que ele faz é oferecer, através da arte (e da vida), um conjunto suplementar de padrões."
Há, portanto, uma abordagem muito afirmativa em sua prática, um desejo de trazer outros padrões. Inventar um mundo mais vibrante, colorido, absurdo e por que não divertido? A falta de imaginação está intimamente ligada à violência. O mundo, que nos é vendido como ideal, cobra seu preço mas nunca é entregue. Convidar as pessoas a imaginar outros padrões, outros universos, outras visões, pode ser uma maneira de substituir um mundo que parece ter retrocedido e se fechado em si mesmo.


Terminando nossa reunião liguei novamente meu celular para chamar meu carro. Naquele momento em que as mensagens acumuladas pululam todas de uma vez, uma delas era mesmo importante e me avisava do falecimento de uma amiga artista. Seu corpo havia sido encontrado e havia indícios que se tratava se um caso de suicídio. Perdemos mais uma de nós. Repassei nossa conversa enquanto voltava pra casa e conclui que depois de todas provações, horrores que passamos coletivamente estamos todos precisando de carinho, cuidados, esperança, alegria e imaginação e talvez a arte seja uma ferramenta aliada nesse processo, ou um lugar de cura.


Marcelo Amorim, junho de 2023.
 

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